segunda-feira, 5 de setembro de 2011

A tímida ousada

O post de hoje é luxo, glamour e riqueza. Em primeiro lugar, não é um post, é um conto, feito inédito neste lindo bloguinho. Em segundo, foi escrito por uma expert, a minha talentosa amiga Vera Helena Saad Rossi. Jornalista, Vera fez mestrado e doutorado (não é para quem quer) tendo ninguém mais, ninguém menos, que a escritora Clarice Lispector como centro de suas pesquisas. Assim, quando pedi a ela um texto sobre Clarice (musa total), ganhei de presente o conto abaixo. Ganhamos. Fiquem com ela.

Beijos, Vera, acho você TUDO. Obrigadíssima pela contribuição, amei.

Beijos, gente, boa semana para nós.

Isabela – A Divorciada e A Noiva

A tímida ousada

“E, depois que se é feliz, o que acontece?”. A professora a olhou desnorteada. Preparara-se para outras perguntas, díspares de um ponto de interrogação desafinado, a desequilibrar a harmonia de suas respostas prontas.

Prostrou-se diante da aluna. Meu Deus, era uma criança! Mas aqueles olhos grandes, prestes a perscrutar sua alma, esperavam por um movimento. Não uma resposta, mas um movimento, um protesto, um grito, enfim, algo que naquele dia, naquela hora, naquela abafada sala de aula, a emudecia. Nada disse. A menina, aos pulos, saiu para o recreio, invadindo de infância o pátio apertado.

Clarice era seu nome. Bem o sabia. Clarice Lispector. Quase um pseudônimo, tamanha estranheza na sonoridade das palavras Clarice e Lispector. Sobre a escritora que viria a ser, ainda era-lhe um fato desconhecido, entretanto, aquela dúvida se perpetuara por definitivo no coração da professora. O mal já estava feito.

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O barulho da chaleira dizia: “E, depois que se é feliz, o que acontece?”. A professora aposentada ainda se pinicava pelas palavras daquela menina, sibiladas havia mais de 30 anos.

Entrementes, o marido lia o jornal na cozinha. Seus óculos sobre o nariz enxergavam mais nítidos os fatos impressos por palavras, enquanto tragava o cigarro entre uma pigarreada e outra. Aproveitando-se da distração da esposa, abocanhou secretamente alguns dos doces proibidos que escondia na caixinha vermelha. A diabetes lhe roubara o que buscava, naquele ato criminoso, recuperar com alguns hum-hum-hum abafados...Se passasse mal, alguém iria socorrê-lo. E se não passasse bem, quem iria socorrer? Sentiu menos culpa com as próximas mordidas.

Dispersa com o chá quase coado, a professora aposentada fazia bolinhas com o miolo de pão. “E, depois que se é feliz, o que acontece.”, dizia o vapor da bebida quente. Algo nela movimentou-se.

— Olha, meu bem, aqui no jornal uma entrevista com aquela escritora que foi sua aluna. Dizem que ela não gosta de dar entrevistas...

— O chá está pronto.

Sentou-se ao lado do marido, como de costume. Ambos olharam para suas respectivas xícaras, mexendo vagarosamente as colherezinhas imersas no chá. Ela procurou não fazer barulho enquanto sorvia a bebida quente. Odiava quando alguém assim o fazia. Mas aquele barulho era inevitável, e, como que para se justificar, tossiu. Vermelha, a bebida dizia: “E, depois que se é feliz, o que acontece.”. Algo nela protestou.

—Clarice Lispector é seu nome.

—...

O marido saboreava pelo chá seu pequeno delito. À medida que lia, balançava a cabeça, tirava os óculos para coçar o canto dos olhos, recolocava-os inquieto e retornava ao jornal, um pouco realizado, por certo, com o ato ilícito que realizara alguns instantes antes com aqueles doces.

—Lembro-me de, certa vez, ela ter se auto-declarado uma tímida ousada. Alguém que escreve livros sobre pessoas que comem baratas pode até ser ousada, mas tímida, faça-me o favor!

—Hum, hum.

“E, depois que se é feliz, o que acontece”, sussurrou o jornal. Ela gritou, para dentro. Nada disse, de fato. Apenas voltou a sorver o chá, já despreocupada com o barulhinho, contorcida pela vontade de quem um dia também haveria de comer uma barata.

Vera Helena Saad Rossi

8 comentários:

Andarilho disse...

"E, depois que se é feliz, o que acontece?"

Se termina a história, oras.

5 de setembro de 2011 às 08:43
3 x Trinta - Solteira, Casada, Divorciada disse...

Nada, Andarilho. Aí é que se começam as histórias.

Maravilhoso o conto, Vera! Parabéns e super obrigada!

=D

beijão

deb

5 de setembro de 2011 às 11:35
Carol disse...

Que lindo, lindo, lindo!

Nossa, coisa boa pra começar a semana!
Clarice é demais, e a Vera arrasou.

5 de setembro de 2011 às 12:03
Ana, Fernanda e Mônica disse...

muito bom!

5 de setembro de 2011 às 13:34
Anônimo disse...

Consegui ate visualizar a angustia da professora!
Parabens e grata
B.

5 de setembro de 2011 às 14:28
Vera Helena disse...

Bela, querida, muito obrigada por postar meu texto e pela linda apresentação, fiquei até sem jeito, sua linda! Agradeço também a todos pelos comentários tão especiais, poxa fiquei muito feliz que gostaram do conto, uma homenagem à Clarice Lispector, estava um pouco apreensiva, pois leio cada texto lindo por aqui. Débora, obrigada pelo carinho. Aliás, aproveito para fazer a propaganda. Ontem ocorreu o lançamento do meu livro de contos Mind The Gap, que abriga meu conto mais bonito: Felicidade Fora de Contexto, feito em parceria com a Débora, aliás o título é dela.

Beijos a todos

5 de setembro de 2011 às 21:13
Anônimo disse...

Vale a pena comentar! Muito bom! =] beijos

5 de setembro de 2011 às 23:38
3 x Trinta - Solteira, Casada, Divorciada disse...

Mais vale um tímido que se revela ousado do que um metido a ousado que nos bastidores não passa de um medroso. Viva Clarice. Obrigada Vera.

Bjs da Solteira

6 de setembro de 2011 às 17:02